Não tem endocrinologista para mim. Já fui há vários. Estou com câncer agora, com um cisto na supra-renal, dentre outros, e os médicos todos não sabem se continuo ou paro de...
Não tem endocrinologista para mim. Já fui há vários. Estou com câncer agora, com um cisto na [glândula] supra-renal, dentre outros, e os médicos todos não sabem se continuo ou paro de tomar hormônio. Porque se eu paro, eu tenho osteoporose. Não chegaram a nenhum consenso. Eu sou uma cobaia humana para a medicina.
O relato é do escritor João Nery, primeiro homem trans a se submeter a cirurgias no Brasil, em 1977. Em debate no 15º Seminário LGBT do Congresso Nacional, o ativista criticou falhas no sistema de saúde para atender a pessoas transsexuais e transgênero. “Nós somos invisíveis. E quero deixar claro que homem trans também usa vagina, homem trans também engravida e, nem por isso, deixa de ser homem”, apontou.
Nery contou que tem 8 próteses no corpo e uma artrose sistêmica e que não há estudo entre a introdução de testosterona no organismo de pessoas transgêneros e o desgaste da cartilagem.
O despreparo dos profissionais de saúde em lidar com questões de gênero está inclusive nos detalhes, como qual equipamento usar para coletar a urina de pacientes. “Eu já tive um infarto, já fiquei na CTI [Centro de Tratamento e Terapia Intensiva] uma semana e ninguém sabia tratar um corpo trans. Nenhum profissional de saúde, do médico ao enfermeiro. Usa patinho? Usa comadre? Como que faz?”, conta o escritor.
João Nery é considerado o primeiro transgênero do Brasil a ser operado. Isso aconteceu em plena época da ditadura, quando a cirurgia era considerada lesão corporal grave pela lei. O escritor fez a mamoplastia masculinizadora, que consiste na retirada das mamas e transformação do tórax em um de aspecto masculino. Ele também retirou o útero e iniciou um tratamento à base de testosterona. Era 1976 e, dois anos depois, o médico que lhe operou foi condenado a dois anos de prisão por ter feito cirurgia em uma mulher trans em 1971.
A discriminação também é sentida por outras pessoas trans. Nery contou relatos de homens trans que ouviram de endocrinologistas que não dariam “testosterona para sapatão” ou psicólogos que não sabem como lidar com questões de gênero.
Outra crítica feita no seminário foi à restrição de atendimento de especialidades como ginecologia e obstetrícia no SUS no caso de pessoas com nome masculino. “São especialidades exclusivamente femininas, então se eu preciso de ginecologista, não posso dar o nome social dentro do processo transexualizador no próprio SUS porque vai ser lido como fraude”, afirmou. De acordo com Nery, não há previsão de mudanças para resolver essa questão no SUS.
O ativista criticou também o que chamou de falta de interesse do Ministério da Saúde em estudar transmasculinidades e na políticas públicas sobre HIV, que invisibilizam homens trans, no entendimento dele.
“Homem trans nunca recebeu camisinha. Homem trans não pega Aids não. Para o Ministério da Saúde só quem pega Aids é travesti e mulher trans. Nós somos invisíveis. E quero deixar claro que homem trans também usa vagina, homem trans também engravida e, nem por isso, deixa de ser homem. Nem por isso perde sua identidade masculina.”
De acordo com o ativista, gênero e sexualidade só é cadeira obrigatória em 5 faculdades no Brasil. “Você forma psicólogos, assistentes sociais, médicos que não sabem diferenciar gênero de sexo, sobretudo na Medicina, que talvez seja a mais transfóbica de todas”, afirmou. Para a Medicina, Nery é considerado um transexual feminino por causa de sua genitália.
Ele também criticou o uso da palavra “mastectomia” em vez de “mamoplastia masculinizadora” ao se referir à adaptação de uma mama feminina para uma mama masculina.
Além do âmbito da saúde, o ativista chamou atenção para outras violações de direito, como o fato de o Congresso ainda não ter aprovado a criminalização da LGBTfobia, ainda que estejam em tramitação diversas propostas sobre o tema.
O preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais matou uma pessoa a cada 19 horas no Brasil em 2017. Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, o número de mortes motivados pela LGBTfobia chegou a 445 no ano passado, um aumento de 30% em relação a 2016. Também no ano passado, o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos (MDH), recebeu 1.720 denúncias de violações contra LGBTs.
Ao final, o debatedor fez uma defesa da diversidade. “É preciso aceitar as transmasculinidades, que não abarcam só os homens. Abarcam os nominários, aquelas pessoas que não querem ser homem nem mulher, ou querem ser as duas coisas, ou não tem gênero nenhum. Todo mundo tem o direito de ser o que quiser. Nós somos pluri”, afirmou.
Autor da autobiografia Viagem Solitária(LeYa, 2011), Nery contou que está escrevendo um livro sobre velhice trans. “É quase impossível porque não tem velho trans. A idade média de uma travesti é 35 anos de idade. Ou morre de droga, ou de suicídio, ou de HIV, ou morre assassinada, que é o mais comum”, afirmou o escritor.
De acordo com pesquisa contínua feita pela ONG Transgender Europe, o Brasil tem o maior número absoluto de assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso. Levantamento mais recente, de outubro de 2015 a setembro de 2016, mostra 123 homicídios desse tipo no País, bem acima do México, que fica em segundo lugar, com 52 mortes.
Já o relatório Violência Contra Pessoas LGBTI de 2015 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), revela que a média da expectativa de vida de mulheres trans varia de 30 a 35 anos de idade.
O Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), por sua vez, mostrou a cada 48h uma pessoa trans é assassinada no Brasil e a idade média das vítimas é de 27,7 anos. Segundo o levantamento, 80% das vítimas eram negras ou pardas e 67,9% tinham entre 16 e 29 anos. 70% eram profissionais do sexo.